A
bruxa Josefa
Sorrateiramente, sem
dar os bons dias a ninguém saía Josefa de casa todas as manhãs, bem cedinho.
Sem dar os bons dias a ninguém era uma maneira de dizer porque ela, pela sua
própria boca, eram as outras pessoas lá da aldeia que lhe viravam a cabeça e
fingiam não a ver. Estava sempre preparada para uma boa intriga e então com a
vizinhança nem se fala. Sabia-se que ela era invejosa, trapalhona, mau-caráter,
ensarilhadora de perfeição, e até se
afirmava à boca pequena, não fosse o Diabo tecê-las, que aquela mulher, a
Josefa da Arminda, que Deus lá tenha a alma em descanso pois era uma santa de
uma mulher e logo houvera de ter tido uma filha assim, era uma bruxa. Na
aldeia, onde outras pessoas gostam também de fazer meia e liga a par das
conversas sobre a vida alheia não havia quem não falasse mal de Josefa, poucas
lhe queriam bem, pois gente de Satanás, longe da porta, longe da porta. Houve um
casamento que se desfez com o noivo já no altar da igreja, uma jovem que se
afogou na ribeira, sem que se lhe conhecessem problemas de cabeça, dois
pastores que dispararam um no outro por causa da morena Jacinta, ainda por cima
desdentada, uma manada de vacas solta a meio da noite que invadiu as estradas e
fez com que o jipe da GNR se tenha despistado e caído numa vereda, a mulher do
Dr. Bernardes, vejam lá tão bom médico, coitado, que fugiu com um caixeiro
viajante e tantos outros sarilhos à conta das intrigas que diziam serem obra da
Josefa que se aqui se fossem a relatar todas, qualquer um de vós arrepiaria
caminho antes de passar às portas daquela aldeia, que é como quem diz,
passariam a léguas. Todos os dias Josefa saía manhã fora, direita aos campos,
ninguém sabia de como se sustentava ou quem a sustentaria, pois homem nunca
fora visto a galgar-lhe a cancela e só voltava quando a alcofa de vime abarrotava de ervas e
ervinhas, arbustos e bagas, algas da ribeira e até de fungos que se diriam
incomestíveis. Houve quem jurasse tê-la visto chegar, um dia, com uma cabeça de
porco sangrante, ela que não criava bichos e ninguém nas redondezas se queixara
de roubo, dentro da alcofa e outros que não, que não seria porco, mas também
que sim que poderia ser e então galinhas nem se fala pois que raro não era que apareciam
nos galinheiros com as cabeças cortadas, principalmente as pretas e pedreses,
coisas do escuro da noite e aquilo, jurava-se, não era coisa da zorra, antes
obra do demónio.
A verdade, verdadinha
, é que o cheiro das sopas e dos caldos que provinha da casa da Josefa, daquele
caldeirão fumegante, supostamente negro como seriam negras as rezas da
misteriosa mulher, perfumes silvestres à mistura com cheiros de enchidos de
carne cozida, deixava todos os fins de tarde a aldeia hipnotizada. E no meio de
cada casa, nos quintais ou azinhagas, parados e petrificados como que por
encanto, porque se sabe já que Josefa é uma mulher especial que além de
intriguista é uma verdadeira bruxa, pareciam mais mortificados do que os
mortos, casais e filhos de casais, casais sem filhos, homens e mulheres
solteiros e solteiras, novos e velhos e outros muito velhos, com as cartas da
bisca na mão sem a poderem jogar nas mesas de granito da taberna, crianças em
frente a uma bola ou um arco ou um pião sem se mexerem, os músicos num mudo e
triste silêncio numa estranha estatuária em cima do coreto, cães que não
ladravam, gatos que não miavam, galinhas que não cacarejavam, alimárias que não
zurravam. Na aldeia só se ouvia a voz monocórdica e zumbida de Josefa a cantar
e as sombras de uma dança à volta do caldeiro e ao longe, lá muito longe nos
confins da serra, quando o vento era de feição o som dos lobos a uivarem.
© Vítor Fernandes
© Vítor Fernandes