Esta será a minha última intervenção pública sobre
o AO de 1990. Não mais me pronunciarei sobre ele, nem em artigo de opinião, nem
em comentários às publicações pró e contra que são feitas nos mass media incluindo as redes sociais.
Não participo em cruzadas. Reservo-me o direito de em tertúlias de amigos,
poder defendê-lo em off, sem qualquer
azedume e cuja discussão culmine sempre com um "Viva a língua portuguesa!"
e, de preferência, com uma saudação num copo de bom vinho tinto. Português, é
claro.
Até ao início do século XX,
tanto em Portugal como no Brasil, seguia-se uma ortografia que, por regra, se baseava nos étimos latino ou grego para escrever cada palavra: phosphoro (fósforo), lyrio (lírio), orthographia (ortografia), phleugma (fleuma), exhausto (exausto), estylo (estilo), prompto (pronto), diphthongo (ditongo), psalmo (salmo), etc.
(retirado da wikipédia)
Em 1910, logo após a implementação da República foi criada
uma comissão, onde, entre outros, pontuavam , Carolina
Michaëlis, Cândido
de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite
de Vasconcelos, vultos incontornáveis da cultura portuguesa, para
que se estabelecesse uma ortografia simplificada a usar no ensino e nas
publicações oficiais. Em 1 de Setembro de 1911 a Reforma Ortográfica é
oficializada e prevista a sua implementação até 1913.
Tal como hoje, houve grandes escritores e poetas a
insurgirem-se contra esta reforma. De Alexandre Fontes, Teixeira de Pascoaes a
Fernando Pessoa não se deixaram de ouvir comentários, críticas e a escreverem-se
peças como a que transcrevo da autoria de Fernando Pessoa:
"Não tenho
sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto
sentimento patriótico. Minha pátria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que
invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente,
Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve
mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia
simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada,
como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que
me enoja independentemente de quem o cuspisse".
Ora a verdade é que a
maioria da obra de Fernando Pessoa é publicada a título póstumo (em vida
publicou quatro obras, que apesar de a "sua pátria ser a língua portugueza",
ou talvez por isso, três delas fê-las publicar em inglês), acabaram por ser
publicadas mais de uma vintena de anos após a Reforma e, como tal, segundo a
"nova" grafia. Está obviamente por saber se tivessem sido publicadas
com a grafia anterior a 1911 se Pessoa teria sido lido como foi ou se se
continuasse a publicar nessa mesma grafia haveriam mais do que colecionadores a
adquiri-la. Mas isto é especulativo e não vou por aqui.
Dizem os anti-AO de 1990 que este Acordo foi imposto por
decreto. Se isto não fosse uma coisa séria daria vontade de rir. A Reforma de
1911 foi imposta por decreto a posteriormente o AO Luso-Brasileiro, é assim
exatamente que se designa, de 1945 foi igualmente imposto pelo decreto-lei 35228 de 8
de dezembro de 1945.
"Está bem", dirão alguns, "foram todos por decreto lei mas agora
temos fatos e não factos, espetadores e não espectadores". Pois temos
se escrevermos no Brasil. Basta ler o AO em vez de vir para as redes sociais
escrever amén! Temos factos e espectadores em Portugal. Porque se a discussão é
a perda da etimologia latina e grega então remeto-vos de novo para Fernando
Pessoa ou mais simplesmente para Teixeira de Pascoaes "Na palavra lagryma, (...) a
forma da y é lacrymal; estabelece (...) a
harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão
psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio...
Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é
transformal-o numa superficie banal".
Se é desta forma de escrever português que os atuais anti-AO
têm saudade (saudade do que nunca escreveram, claro) então sim, dou-vos a minha
palmada nas costas de solidariedade, embora não lacrymeje convosco. Agarram-se então a quê os que estão contra o
acordo? Já vi muitos brasileiros chorarem a perda do trema. Deixam de escrever
lingüiça e cinqüenta. Oh que drama! Querem ver que passarão a contar de
quarenta e nove para sessenta e não mais matarão porcos? E os portugueses? Caem
do hífen abaixo?
Pois eu, meus amigos, pagarei a mesma multa se for em excesso
de velocidade numa auto-estrada ou numa autoestrada. Dessa ninguém me livra e
que se lixe o hífen. E já agora, daqui a trinta anos, quando todos passarmos a
escrever (ou não) segundo o novo AO, quero ver todos os meus amigos escritores
que hoje arvoram a defesa da língua de Camões a escreverem como se escrevia no
século XVI. Eu terei dificuldade em ler-lhes as suas belíssimas obras,
confesso.
PS. Já se esta raiva anti-AO for ideológica, aí não tenho
opinião. Há, de facto, muita gente saudosa de Salazar e dos seus decretos-lei.
Eu por mim dispenso.