Ismael Pião tinha um sonho de menino. Não um sonho como o do
Tony Carreira mas, de qualquer maneira, um sonho. Talvez se ele sonhasse em voz
alta a mãe o tivesse levado a sério. Mas ele sonhava calado, silencioso mesmo e
quase sempre a preto e branco. Eu diria mais, Ismael Pião sonhava a preto e
branco, 200 ASA. E quando ele, antes de ir para a cama, apagava a luz e o
quarto mergulhava na escuridão, entrava direto na câmara escura e não fosse uma
pequena luz de presença vermelha, muito sumida, que lhe aliviava os receios,
dir-se-ia que os químicos começavam a penetrar-lhe a mente, chegando até a ter flashes que o faziam saltar arrepiado. Mas
não era muito negativo o nosso Ismael Pião embora, nem por isso, deixasse de
acordar inundado em suores, como se algo lhe escorresse corpo abaixo. Nessas alturas
sentia-se como que pendurado numa corda com duas molas da roupa. Foi numa
dessas ocasiões em que, apesar da escuridão do quarto, Ismael Pião passou a
noite em branco graças a dois refletores que a vizinha do prédio em frente
improvisou, ao ter estendido um par de lençóis brancos, numa quinta-feira, dia
da barrela em sua modesta habitação, que ele decide revelar a sua mãe, que
vestia sempre vestidos de chita, um pouco desbotados como uma cor acabada de
inventar por um qualquer Ismael Gevaert ou talvez, muito provavelmente, por Ism
Aemoto Fuji (estão aqui ao lado a soprar-me ao ouvido que poderá ter sido Ismael
Smith Kodak), o seu desejo, a sua vontade, a sua obsessão, o seu fetiche, a sua
queda, a sua inclinação, o seu desarrumo mental pela fotografia. A mãe,
coitada, que vivia entre satisfazer todas as vontades ao filho e a realidade
nua e crua do dia-a-dia, mormente a hipótese de fazer do seu filhinho um homem,
decidiu que ele iria trabalhara para os TLP, que era uma empresa de futuro e
bem ligada, se é que isso queria dizer alguma coisa.
O nosso Ismael Pião, temos aqui que lhe chamar nosso, ou
melhor, porque já o fizemos antes, continuar a chamar nosso, pois de hoje em
diante, quando se falar de fotografia neste livro de histórias sem imagens,
nunca mais nos poderá sair da cabeça Ismael Pião, depois de se ter visto
enredado em aparelhos telefónicos de todos os modelos, abri-los para ver se por
dentro havia espelhos que refletissem a voz dos seus utilizadores, até ter
percebido por fim que o som e a luz tinham formas de se propagar de maneiras
muito diversas e que se não fossem as perturbações eletromagnéticas em fitas
nunca a voz poderia ser registada, ao contrário da imagem que impressionava,
isso sim, sais cristalinos de prata bastando que os comprimentos de onda,
cala-te que isto não é nenhum livro de física, disse às tantas o narrador ao
escritor e este calou-se porque isto não é um livro de física. Finalmente,
depois de ter visto que os telefones de disco não tocavam discos, não se
assemelhando sequer a uma grafonola, mas sim usavam um discador em forma de
disco onde se enfiava o dedo indicador para o fazer rodar, largou postes, fios,
troncas, cavilhas, discadores não sem antes ter telefonado para casa e gritado
a plenos pulmões para o bocal «mamã vou ser fotógrafo!»
Free-lancer em
várias revistas e jornais, viu-se confrontado com os custos do equipamento fotográfico,
com a dificuldade que um rookie tem
em se impor num espetro que já está ocupado por tubarões e acabou por cair nas
garras da Judiciária. Não, não cometeu nenhum crime. O nosso Ismael Pião acabou
por arranjar emprego na Polícia Judiciária como fotógrafo de cenas de crime.
Mas aquele dia foi fatídico. Ismael Sacadura Flores, o já nosso conhecido
inspetor de polícia, acabara de receber um telefonema, que a menina das troncas
encavilhou direta para o gabinete policial, antes de continuar o seu crochet,
demasiado perturbador para o seu dia de trabalho que acabava de se iniciar.
Tinha havido um horrível crime no número 43 da Rua dos Correeiros, num sexto
andar onde morava uma menina, cria o chefe de brigada Ismaelix, que usava um
bigode à Chalana, porém branco e uma trança até ao meio das costas, que seria
italiana. Com passo apertado, bate na porta do gabinete de fotografia, Ismael
Pião ainda estava deitar duas colheres de açúcar na caneca de café de cevada
que D. Gina, a empregada que vendia cafés de cevada lhe tinha levado, teve de o
engolir à pressa, o que foi mau, muito mau, porque queimou o céu-da-boca e a
ponta da língua, pegou na máquina fotográfica, colocou-a ao ombro, abriu a
gaveta dos rolos, pelo sim pelo não enfiou no bolso dois rolos virgens de vinte
e quatro fotografias cada e saiu com um passo tão apressado como o do inspetor
Sacadura, tendo até tido dificuldade em o apanhar já que o dito Ismael Flores
lhe levava quase um corredor de avanço. Subiram apressadamente a escada do 43,
dois em dois e até três em três degraus, quando o patamar entre pisos lhes dava
balanço para tal e, com a porta já aberta por outros polícias, mormente pelo
chefe Ismaelix, o que tem um bigode à Chalana, deparam com o corpo de Isabella
Vicentini, deitada no chão, com marcas visíveis de facadas, que hoje sabemos
terem sido sete, por debaixo de uma blusa branca de cambraia de algodão. Ismael
Pião olhou para o corpo da jovem bailarina e ficou estarrecido. De repente
dá-se-lhe uma volta ao estômago de tal maneira que uma mão na boca quase foi
impotente para segurar um vómito. Mas não era apenas o estômago que lhe andava
às voltas pois a cabeça de Pião não parava de girar e não sabemos com que guita
puxaram Ismael Pião já que ele girou três vezes e saiu porta fora girando ainda
escada a baixo. Diz quem o viu pela janela do sexto andar, que tão depressa vomitava
como rodopiava direito ao Terreiro do Paço. Pensa-se que terá ido assim até à
Quinta do Conde onde morava, ora vomitando, ora girando.
Ninguém mais soube
dele. Hoje, à hora do almoço encontrei-o num restaurante no Gradil. Já com os
cabelos brancos, senta-se sempre perto da bancada das sobremesas. Quando acaba
de almoçar gira na cadeira para pegar o seu pratinho de arroz doce.