sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

85. Ismael (10) - Feliz Ano Novo!


Quando calcorreia os arquivos da cidade, do cartório para as igrejas, das igrejas para a Torre do Tombo, da Torre do Tombo para as câmaras municipais, o senhor Espinheira vai descobrindo coisas que, não só o espantam a ele, mas também a quem ele conta. A propósito de uma casita que recebeu de herança na baixa de Lisboa, mais precisamente na Rua dos Correeiros, foi lendo uns papéis por aqui e por ali, até que descobriu a abertura de um auto da Polícia Nacional de um crime que se tinha dado num sexto andar do número quarenta e três. Foi, casualmente, numa tertúlia dos confrades das iscas com elas que me falou do assunto.

O senhor Espinheira é um homem bastante reservado no que consta a matérias sobre investigação. Depois compila tudo e quando acha que já está na altura certa, publica. Naquele dia lembrou-se de me falar da coisa, segundo ele, por duas razões que não me pareceram muito acertadas. A primeira teria a ver com o meu voraz apetite por iscas com elas. A segunda, talvez mais trabalhada por ele, foi a do meu conhecimento da vida de Ismael Gusmán. E se não fosse intrigante ele ter associado o crime do número quarenta e três à tasca do Ismael, já me deixaria com a pulga atrás da orelha o facto de ele saber algo sobre o caso, uma vez que esse crime tinha sido inventado por mim, para apimentar as minhas histórias e as do meu amigo do peito, Ismael Gúsman, galego nato e criado em Lisboa. E fiquei a matutar com os meus botões se Ismael ben-Avraham existe mesmo e não é uma criação que fiz ao estilo (mal copiado) do que criaria a senhora Agatha Christie, se o homem é mesmo médico, se é judeu e se fuma puros charutos cubanos. E Ekatrina, e Isabela e Ismaelix?

Esta conversa com o Espinheira e o crime do número quarenta e três, sexto andar, onde foi assassinada Isabela, a corista italiana, com sete facadas, num ato de violência indescritível, está separada por mais de cinquenta anos e ainda hoje me causa tanta estranheza ter ocorrido, que desde esse dia que não tenho andado a bater bem. Porque seria que ele me veio falar daquilo com o falacioso argumento do meu prazer pelas iscas com elas? Ou terá ele tido conhecimento de que Isabela é uma personagem de ficção? Ou terá lido o manuscrito de Francisca? Ou será algum enredo ligado com a misteriosa senhora de Trás-os- Montes?

Quando voltar a encontrar o Espinheira vou-lhe dizer cara a cara, olhos nos olhos, sem qualquer receio de vir a ser desmentido, de que não há prato que eu mais deteste do que as iscas com elas. E que só estava nessa reunião dos confrades das iscas porque me enganei no andar. Até porque se notava logo que eu não tinha o chapéu da confraria e que o laço na camisa e os sapatos de verniz era o meu traje de gala para mais uma noite de Reveiilon.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

84. Ismael (9) - Açúcar e canela


Lembro ainda dos carrinhos com rodas de madeira, dos índios e dos cowboys montados em cavalos de plástico, dos livros do pato Donald e dos seus três sobrinhos que me dava o Menino Jesus. Lembro-me do frio das noites de Natal que teimava em entrar pela frincha da porta da cozinha e do alguidar de barro onde a massa era batida e abafada. Não amor, com as tuas calças não. Isto é preciso força de homem. E depois de amassada a farinha, bem amassada com água quente e abóbora e um cálice de aguardente, apropriadamente fermentada e umas mãos fortes esmurrando-a e virando-a e, depois de se polvilhar com uma mãozinha de farinha seca, as cinco chagas de Cristo. Um pano branco, muito bem passado a ferro fará a primeira cobertura. Depois os cobertores e as calças de homem. Para levedar e a tornar fofa. À noite, bem à noitinha, a avô sentada em frente ao fogareiro com o óleo bem quente, que um salpico de água haveria de testemunhar a temperatura, esticava as filhós com as mãos e punha-as a fritar. Saíam loiras, fofinhas e bem cheirosas. Ainda hoje me lembro do cheiro daqueles fritos, num misto de aromas de abóbora com aguardente que perfumavam toda a cozinha. Depois eram temperadas com açúcar e canela. Nessa época não se bebia coca-cola e por isso o pai natal não aparecia pendurado nas varandas, nem a bater às janelas das casas. Naquele tempo, os bafos da vaquinha e do burro aqueciam o Menino em leito de palha enquanto Maria e José o adoravam no presépio. Num carreiro, desenhado com areia por entre o musgo, três reis, montados em camelos, seguiam a estrela que o meu pai colocava bem lá no cimo da árvore de Natal e, apesar de nós nunca termos visto neve, bolinhas de algodão penduradas no pinheiro mostravam que dentro de minha casa e apesar do calor da cozinha e do cheiro das filhós, do açúcar e da canela e das fatias douradas que a minha mãe já se preparava para fritar, mostravam que na minha casa também poderia nevar. Mãe, ainda falta muito para o Menino Jesus chegar? Perguntava eu enquanto olhava pelo canto do olho para ver quando é que o Menino deixaria a manjedoura onde dormia de cabelos loiros, muito loiros e bracinhos no ar para vir trazer os presentes à chaminé, até que, vencido pelo sono, já o sapatinho que há horas tinha nas mãos me pendia, era levado ao colo para a cama, com um beijinho e o aconchego dos lençóis.

Um dia relembrava as minhas noites de Natal com Ismael Gúsman. Uma lágrima corria-lhe no rosto. Diz que enquanto o neto cá morou até um triciclo lhe deu. Interrogava-se como é que seria o Natal lá longe para onde tinha emigrado. Depois, quando ficou só, às cinco da tarde fechava a tasca da Rua do Correeiros, já a noite começava a cair e, chegado à Quinta do Conde, comia uma sopa de couves, um naco de pão com qualquer cossita, como ele me costumava dizer, acendia o rádio transístor na mesa de cabeceira e adormecia, talvez ao som do Adeste Fideles. Ah é verdade, Sr. Constantino, pero não foi na noite de Natal, no!. En los Reyes como é o costumbre lá de mi terra. E falou-me de novo no triciclo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

83. Ismael (8) - O manuscrito de Francisca


Seis anos Ismael Gúsman viveu com Isaura Peres. Francisca que adorava romances de amor não poderia estar mais feliz com este romance. Francisca chegou a morar no Porto. Filha do Alentejo quis o destino que, por força do trabalho do marido, um ilustre juiz de direito, tivesse de se deslocar para o norte do país. Não viveu aí muitos anos, o casamento não correu bem, pois o Dr. Castro Ribeiro era de mulheres, tendo decido rumar de novo a Sul. Mas regressar ao Alentejo não estava nas suas cogitações mais próximas. Nesse tempo grassava a fome e a miséria pelos campos alentejanos. Os jornaleiros alimentavam-se de toucinho cozido num caldo de água e acelgas e, se havia um naco de pão era porque o caseiro, ou o maioral do gado dispensava um pouco do que o patrão lhes dava. As pessoas emigravam para França e para a Alemanha que precisavam ser reconstruídas e havia trabalho. Quem cá ficava também não se fixava nos campos. É verdade que houve a campanha do trigo mas não chegava para todos. Francisca, que dela não possuía fortuna e como o Dr. Castro punha e dispunha, bem suportado por um regime que protegia os mais fortes, viu-se forçada a regressar com uma mão atrás e outra à frente. Ficará para mais tarde contar a vida atribulada de Francisca. Vem assim, a nossa alentejana, quando regressou ao sul, a fixar-se na Quinta do Conde. Foi aí que conheceu o meu amigo galego, Ismael Gúsman e o seu arrastar de asa à filha do sapateiro a jovem Isaura Peres, a quem todos chamavam Isaurinha bate-sola.

Naquele dia abafado de maio, trovejava e rezava-se a Santa Bárbara. Francisca precisava de ir à mercearia. Queria fazer uma sopinha e faltava-lhe o nabo. Sem nabo, para Francisca, sopa não era sopa. A mercearia do Sr. Rodrigues tinha de tudo. D. Francisca era vaidosa e até para ir à mercearia se aperaltava. Usava um carrapito muito bem composto com dois ganchos de madrepérola que o seu sobrinho Sebastião lhe tinha trazido de uma viagem que fez às Canárias. O sobrinho de Francisca era um belo rapaz, embarcadiço, tratava dos camarotes e das copas, ganhava para se governar. Só era pena ser manco, pois que se tratava de uma bela figura. Diziam que se tinha apaixonado por uma corista italiana e que andava na vida do mar para juntar um dinheirinho. Vestiu um vestido de chita às flores, calçou uns sapatos abertos, que mais pareciam sandálias, fino recorte a condizer com a sua anterior condição, colocou um cinto que lhe realçava a estreita cintura, pegou num pequeno cabaz de verga e um guarda-chuva, não fosse a trovoada lhe pregar uma partida e saiu.

Naquele dia na mercearia o encontro entre Francisca e Isaura foi tudo menos alegre. A filha do sapateiro estava disposta a abandonar o galego e Francisca ficara perplexa. Tão amorosos que eles eram. Depois, assim como se fossem duas grandes confidentes, veio Isaurinha bate-sola a confessar que soubera que Ismael tinha tido outra mulher, da qual nascera um rapaz, tal e qual a carinha do pai que até lhe puseram o mesmo nome e que, sempre que o galego estava com ela, ela se imaginava como uma substituta. Parece até que a moça era bailarina, amiga de uma tal Isabela que tinha sido assassinada uns meses atrás e a última coisa que Isaura queria era ver-se envolvida em crimes de sangue. Entrou Sebastião na mercearia, encharcado até á medula mas no seu tão inconfundível como harmonioso coxear, trocou olhares com Isaurinha, deu um beijo na testa da tia Francisca e pediu uma gasosa.

Quando regressou a casa Francisca colocou o nabo de lado. Pegou num bloco de apontamentos e gatafunhou umas frases. Juntou dois com dois mas não lhe dava quatro. Toda a história de Isaurinha bate-sola lhe cheirava a esturro a ponto de não ter acreditado nem  em uma única palavra? O que teria Isabela a ver com a mãe de Ismael Gusman Júnior? Porque é que o seu sobrinho andava a desencaminhar Isaurinha bate-sola se a sua paixão era uma bailarina do parque Mayer? O filho era tal e qual o pai mas quem seria a paixão de Ismael? Disse-me o Espinheira, bem recentemente, que apesar de toda a sua formação paleológica, uma das mais indecifráveis escritas era a do manuscrito de uma tal Francisca, da Quinta do Conde.

Eu era muito pequeno e nunca soube nada do que acima escrevi. Tive de inventar tudo para preencher mais um capítulo do meu livro. Mas fica bem haver histórias de amor, que com paciência desenvolverei, descreverei até a cor dos cortinados do quarto de Isaurinha Peres, a filha do sapateiro, do candeeiro de teto de Francisca, a qualidade das pantufas que Ismael usava em casa e os afagos que o bobby, o cão rafeiro, do marinheiro Sebastião recebia de cada vez que voltava de viagem. Mas agora só vos pretendo dizer que na tasca de Ismael Gusmán, que apenas comecei a frequentar já nos inícios dos anos setenta, pendurados numa parede, havia, como decoração, uma bigorna de sapateiro, duas sapatilhas de ballet e um ramo de hortaliça com dois nabos dependurados. Todas as semanas, um homem de bigode à Chalana, mas totalmente branco e com um sotaque de emigrante francês, substituía a verdura por outra mais viçosa.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Ismael (7) - Todo livro tem um tema, ou não...


Nunca falei ao senhor Ismael sobre o meu projeto de livro, embora já me tivesse passado pela cabeça que, se um dia eu escrevesse, ele teria como protagonista Ismael Gúsman. Conhecendo-o como eu o conheci, tenho a certeza que ele levantaria o avental azul-escuro para limpar o suor do pescoço, tiraria a boina e coçaria a cabeça. Depois perguntaria o porquê de ser ele. Conhecendo-o como eu o conheci, ele não gostaria de ser o protagonista mas apenas mais um, devidamente contextualizado. Seria aí que eu lhe diria que ele não estava sozinho. O seu pai Ismael Gúsman y Toledo, seu filho Ismael Gúsman Júnior, seu netinho Isamelito ou Ismaelzinho como também era chamado, os seus vizinhos, Ismaelix, Mendix  e Ismael ben-Avraham, mais o tio deste, Ishamel Baruch, Agatha Christie, Uderzo, Daniel Silva, Isabela, Ekatrina Smirnova, o Espinheira, a Fernandinha e até a D. Laurentina, para além de alguns amigos meus, entre outros, não esquecendo a misteriosa senhora de Trás-os-Montes e o inspetor Ismael Sacadura Flores e o coxo, fariam parte da história e, se me apetecesse, ao longo do pseudolivro, o tal que nunca escrevi mas que um dia, se me desse na real gana escrever, escreveria,  ainda apareceriam mais. Nessa altura, Ismael levantar-se-ia, iria buscar uns salgadinhos num pires de loiça de segunda, caqueirado nos bordos, dois copos grossos de vidro mas muito bem lavados, um canjerão meio de tinto, porque ele não bebe mas faz companhia e depois de acender um Português Suave sem filtro, cigarro a que ele se habituou depois de deixarem de ser produzidos os Provisórios, daria uma, vá lá, duas baforadas e dir-me-ia, veja lá xenhor Constantino em que é que me vai meter.

Postulado que Ismael Gúsman nunca soube deste seu protagonismo, assentemos no que ele me sugeriria para a minha virtual escrita ou como se diz hoje em dia nos meios intelectuais, para a minha putativa narração. Começaria com certeza por me propor que fossemos todos vizinhos, num só prédio, nos juntássemos em famílias tipo, os ixes eram todos franceses e viviam no segundo esquerdo, os escritores compartilhavam o apartamento do primeiro direito, D. Laurentina, seria a irmã mais velha da falecida mãe de Fernandinha e vivia com a sobrinha no rés-do-chão, Isabela e Ekatrina, já o sabemos, moravam juntas no sexto andar do número quarenta e três e assim sucessivamente. A misteriosa trasmontana ocupava a espaços um dos apartamentos do quinto andar. Eu dir-lhe-ia que isso não poderia ser, visto que, embora só agora tivesse sido publicado, já em mil novecentos e cinquenta e três, José Saramago tinha escrito Claraboia com a mesma estrutura. Pois bem alvitraria ele que, sendo assim, ainda teríamos a hipótese já que, tirando as bailarinas, todos moravam na Quinta do Conde (onde aquelas até poderiam ter morado no início), pôr todos a viver na mesma rua, uma rua, sei lá, que aos poucos se fosse extinguindo. Claro que isso seria como que plagiar o Mário Zambujal que já tinha escrito Histórias do Fim da Rua sobre o mesmo tema. Como tenho a certeza que ele encontraria uma solução, sugerir-me-ia que escrevesse um livro policial, “O crime do número 43” em que, depois de muitas cenas canalhas, o inspetor Ismael Sacadura Flores em fim de festa, reuniria todos na tasca da Rua dos Correeiros e, um a um, iria divulgando os motivos pelo qual ele ou ela poderia ter sido o assassino de Isabela e ao mesmo tempo ilibando-os até que, perante as evidências, quiçá Fernandinha, ou a misteriosa senhora de Trás-os-Montes ou, porque não, o respeitável senhor Ishmael Baruch, afinal um agente da Mossad infiltrado em tabernas, teatros revisteiros e cabarets, acabasse confessando que teria morto à facada à pobre corista italiana. Claro está que Mrs. Christie e o seu inseparável Poirot já o fizeram bem melhor e nem a rua dos Correeiros é o Nilo, nem o comboio do Rossio é o Expresso do Oriente e eu ousaria propor que, com tantos personagens, bastaria encontrar umas musas inspiradoras, uns velhos mal dizentes e uns personagens a atirar aos descobridores e escreveria um poema épico. E se a inspiração fosse muita, mas muita mesmo, dividi-lo-ia em cantos. 

Seria aqui que o meu amigo galego me daria uma palmadinha nas costas e me diria sem pestanejar Oiça lá xenhor Constantino, eu tenho muita conxideração por voxemecê, mas não quer ir chatear o Camões? E acabaríamos os dois com o resto do vinho que ainda ficara no canjerão.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

81. Ismael (6) - Boina, dia da mãe e sócio do Benfica


Estava a terminar o ano de mil novecentos e sessenta e seis. Ismael Gúsman tinha nascido em trinta e um e vindo com o tio para Lisboa no fim da guerra civil, apenas com oito anos de idade. No dia oito de dezembro fazia o que fazia em todos os domingos e dias santos. Vestia a sua melhor camisa, o fato preto de três peças e os sapatos de verniz que eram bem limpos e abrilhantados com azeite na véspera. Saía cedo de casa e, como a D. Laurentina, uma trintona bonita de cabelos negros e olhos cor de azeitona, tinha ficado sem o seu homem na queda dum andaime nuns prédios altos que andavam a fazer lá para Lisboa, como ela dizia, ele acompanhava-a à missa em Azeitão. Hoje era dia da mãe e Ismael, que já não se lembrava da sua, dizia mesmo que não sabia se a tinha conhecido, iria rezar-lhe três Avés Maria e um Padre Nosso. Depois apanhariam a carreira e iriam comer uma caldeirada a Setúbal.  Foi nesse momento, embrenhado nestes pensamentos, que Ismael Gúsman se lembrou que hoje não podia ser, que hoje não poderia acompanhar D. Laurentina à igreja.

Tinha sido no início do mês passado que o senhor Augusto parou lá pela tasca, num dia que fora buscar mercadoria aos armazéns de S. Domingos a fim de abastecer a sua venda de roupas. Carregado com dois pesados embrulhos de roupa interior e meias angorá, que se vendiam muito bem naquela época, tinha descansado os pulsos lá no senhor Ismael, saboreado um pastelinho de bacalhau superiormente confecionado pela Fernandinha e bebido um tintinho do Cartaxo. Depois falou-lhe que os garotos iam ser batizados na igreja de S. Tiago em Almada no próximo dia oito e que fazia muita questão que ele estivesse presente. A sua mulher, que na altura estava grávida de oito meses e que previa que o mais novo nascesse lá para Dezembro, insistiu muito e os miúdos lá fizeram a doutrina e agora, com doze anitos o mais velho, era já hora de serem batizados. E haveriam de fazer a primeira comunhão, se Deus quisesse. Pela amizade que tinham um pelo outro não poderia faltar ao batizado dos garotos.

Quando o meu pai conheceu o Ismael num torneio de chinquilho que o Pombalense foi fazer à Quinta do Conde, estava longe de vir a imaginar que o seu filho mais velho se iria tornar um amigo do peito de Ismael Gúsman. Nesse dia Ismael, que não se esqueceu de tirar a boina galega ao entrar na igreja, rezou pela mãe dele. Assistiu ao meu batizado, partilhou do nosso lanche e à noite bebeu um bagacinho enquanto dava um abraço ao meu pai pelo nascimento do meu irmão mais novo que resolvera vir ao mundo naquele mesmo dia. Tienes alí más um xócio para o Benfica, Augusto! O meu pai sorriu e, sabendo que a minha mãe, embora não tivesse assistido ao nosso batizado estava bem e feliz com o seu novo rebento ao lado, virou de um só gole o seu copinho de aguardente.

Constou-nos mais tarde que no regresso à Quinta do Conde, o Ismael, por não a ter levado à caldeirada, passou a noite toda em casa de D. Laurentina a pedir-lhe perdão.

domingo, 4 de dezembro de 2011

80. Ismael (5) - Bufos


A primeira pergunta que lhe fiz foi que cara é essa e ele quase me fulminou com os olhos. Ismael estava na ombreira da porta, o espanta-espíritos batia-lhe na cabeça sem que isso o incomodasse, um cigarro português suave sem filtro no canto da boca a dar mostras de que se iria apagar. Tirou a prisca da boca apertou-a entre o polegar e o indicador e jogou-a, como se fosse um berlinde, para o pavée da rua em frente à porta da tasca. E a culpa foi toda sua, senhor Constantino!

Quase me dava um baque quando entrei na tasca do galego. Parecia que tinha havido uma revolução. Mesas e cadeiras desarrumadas, viradas de pantanas, umas ainda caídas sobre as outras, garrafas partidas pelo chão, uma grande mistura de odores de licores e vinhos. Só uma garrafa de ginginha se mantinha intacta no seu lugar costumeiro entre a máquina registadora e o prato dos carapaus de escabeche. Nas prateleiras nada, as gavetas de um pequeno aparador onde Ismael guarda toalhas de mesa, talheres e pratos, caídas e despejadas, e os cacos do que outrora foram pratos de loiça esparramados pelo chão. E sou eu que tenho a culpa, sr. Ismael? Tenha lá paciência, mas não dei por nenhum tremor de terra e mesmo que desse por isso não sou eu que comando a Natureza. E foi então que o galego me explicou tudo. Aquele homem de fato cinzento e chapéu que se senta sempre na mesa do canto. Sim esse mesmo, aquele que todos dizem que é da PIDE.

(o meu pensamento voou; o pai do galego tinha morrido na guerra civil de Espanha, mas isso tinha sido há uns bons trinta e três para trinta e quatro anos; verdade que o D. Ismael de Gúsman y Toledo era republicano, mas o seu tio materno, o que o trouxe para Lisboa, era um devoto falangista e venerava o caudillo; e tantos anos, mas tantos anos depois, a mais a uma criança que chega aqui com oito anos de idade, não o haveriam de conotar com nada; cá para nós, que ninguém nos ouve nem lê, ele nunca se declarou mas eu acho que Ismael era do contra; mas isso era eu que era muito íntimo do galego; como é que eles iriam desconfiar?)

Sabe o que foi, sr. Constantino? Foi o seu livro. Sim o seu livro, aquele de capa cinzenta que você costuma andar sempre com ele debaixo do braço. Mas vossemecê tem necessidade de andar por aí com autores russos a exibir-se? E o pior é esquecer-se dele em cima da mesa. Vou-lhe contar, o tipo de fato cinzento e chapéu, pegou no livro, levou-o com ele, ainda o chamei, mas nada. Não era passada meia hora, chegaram outros, ele não, ele desapareceu, não deve querer que saibam que é bufo, revistaram-me tudo e perguntavam-me onde é que eu escondia os outros, onde que estavam os livros do Lenin e do Stalin?

Se não fosse trágica a situação do Ismael eu ter-me-ia rebolado a rir. Os desgraçados sacaram-me o Piskonov, o meu livro de matemática e deram cabo da taberna ao galego. Divinas inteligências. E ainda por cima tive de comprar um novo, porque àquele nunca mais lhe pus a vista em cima.